Tema de best-seller, uso exagerado de dispositivos eletrônicos com tela e fragmentação da atenção já preocupam cientistas nas áreas da saúde e da educação
Esquecimento ou cansaço mental, para falhas de memória, distração ou excesso de concentração, para justificar retardo mental? Quem nunca se perguntou o que acontece consigo mesmo quando é abordado de súbito e fica sem reação, sobretudo, quando está diante de um dispositivo eletrônico com tela (gadgets), como smartphones, tablets, computadores ou videogames?
Curioso sobre o estado letárgico da mente, o neurocientista francês Michel Desmurget tentou diferenciar tais fenômenos em duas situações diferentes: com e sem o uso dos aparelhos. Tomado pelo interesse no tema, ele foi a fundo e transformou o resultado de sua investigação no livro “A fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossas crianças” (Editora Vestígio, 2021).
Na obra, o autor relata pesquisas de renomadas universidades norte-americanas para embasar sua constatação de que o excesso de exposição aos gadgets causa severos danos à saúde dos indivíduos, em especial às crianças que passam mais de duas horas por dia diante de tais aparelhos. Entre os sintomas apresentados pelos voluntários dos experimentos, estão desde quedas acentuadas no nível do quociente de inteligência (QI) até prejuízos no desenvolvimento cognitivo (caracterizado acima de tudo pelo déficit de aprendizagem), além de distúrbios do sono e sedentarismo.
O fenômeno inclui, ainda, a subestimulação intelectual — fenômeno que prejudica o desenvolvimento cerebral e sua potencialidade total de funcionamento. Outro destaque é a superestimulação da atenção — uma sobrecarga de estímulos que desrespeita o desenvolvimento da criança e pode levar a dificuldades de concentração e aprendizagem, bem como à impulsividade.
No âmbito social, a superexposição provoca a diminuição da quantidade de interações com outras pessoas em geral, sobretudo com a família. Também reduz o número de experiências sociais no mundo físico (fora do ambiente virtual), importante para o desenvolvimento da criança e do adolescente.
Para o administrador, presidente do CFA, e membro da Academia Brasileira de Administração, Mauro Kreuz, os dados apresentados por Desmurged só reforçam o que já é perceptível nas salas de aula, empresas e casas. A superexposição causa a denominada ‘fragmentação da atenção’, que segundo o administrador, ameaça o comprometimento e progresso do rigor cognitivo, bem como os três pilares que moldam a construção do indivíduo: a interação, linguagem e concentração.
Segundo Kreuz, a interação permite o desenvolvimento das outras duas habilidades. Por meio dela, a linguagem é trabalhada e as pessoas ainda trocam experiências e desenvolvem outras habilidades sociais, tais como as Soft Skills, exigidas nas vidas pessoal e profissional.
Na linguagem (comunicação), o indivíduo melhora sua concentração ao trabalhar a coerência (lógica dos fatos) e sequência narrativa. Já a capacidade de associações e retenção de informações (memória) seria trabalhada na concentração.
“O grande risco da fragmentação da atenção é a humanidade parar de pensar de forma mais profunda e analítica e se tornar rasa e limitada intelectualmente. A principal diferença entre os seres humanos e os animais é que nós pensamos, interagimos, nos conectamos e temos discernimento sobre diferentes aspectos da vida; se o lado dialético é comprometido, as pessoas não transcendem”, diz.
Modo
Para o também administrador Marco Túlio Zanini, professor de ‘Liderança e Comportamento Organizacional’ na FGV/Ebape, a perda de tempo gerada pela superexposição aos dispositivos eletrônicos é um dos principais fatores que impactam os profissionais e as organizações. Segundo ele, o problema reside não no uso, mas sim na quantidade de horas utilizadas e no tipo de conteúdo acessado nos aparelhos.
Zanini lembra que existe uma preferência disparada pela busca do prazer e do entretenimento não criativo. Esse tempo, segundo ele, poderia ser utilizado para estudo, busca de informação, de ideias e enriquecimento cultural.
O pesquisador destaca, ainda, que a falta de profundidade gera ruídos na comunicação, gera tendência à polarização de ideias e, na sequência, conflito entre pessoas. Ele defende uma volta à construção de vínculos, por meio do diálogo e da convivência, em oposição ao isolamento voluntário durante o uso dos dispositivos.
Para aqueles cujo argumento para o excesso de utilização é a busca por diálogo a distância, Zanini chama atenção para a diferença entre interação e relacionamento. No primeiro, a pessoa pode interagir com frequência, mas não confia ou acredita pouco nas pessoas.
“Já na construção de relacionamentos, baseados em confiança, gera cooperação, maior produtividade, felicidade e harmonia no ambiente de trabalho, e isso não tem relação com o aumento de interação em rede social. Essa superexposição aos dispositivos é maléfica quando provoca perda de tempo, foco e de energia em coisas que não constroem nem edificam, além de distanciar o indivíduo do aprofundamento em temas que demandam mais senso crítico”, diz.
Clique, aqui, e leia o restante dessa matéria na Revista Brasileira de Administração (RBA), Ed. 145.
Fonte: Leon Santos